VIRGINIA WOOLF CONTRA DAMARES
“Menino veste azul, menina veste rosa!”. Foi com tal frase, enunciada de forma efusiva, que a ministra da “Mulher, Família e dos Direitos Humanos” viralizou mais uma de suas declarações. Logo as redes sociais foram enxurradas de fotos de meninas de azul e meninos de rosa.
Damares Alves se defendeu, afirmando ser uma “metáfora”. De fato, o seu significado não estava no entendimento literal. O enunciado da ministra não implica na imposição de que menina só pode vestir-se de rosa e menino só pode vestir-se de azul. A metáfora representa a fixação de padrões de masculinidade e feminilidade e, de fundo, a ideia de que “homem é homem” e “mulher é mulher”, ou seja, a biologização do debate de gênero – ou, mais ainda, a sua supressão. Nesse sentido, um dos seus principais alvos foram as pessoas trans e todo um conjunto de identidades que extrapolam a fixação e polarização do tipo sexo forte/frágil.
Em 1928, no entre guerras, a inglesa Virginia Woolf publicava “Orlando”. O livro é anterior as contribuições filosóficas e históricas de Simone de Beauvoir, por exemplo, que muito contribuiu em meados na década de 1950 para o rompimento dos olhares biologizantes sobre homens e mulheres. Foi um importante suporte teórico para que a condição da mulher e a desigualdade social entre homens e mulheres fossem compreendidas como um produto histórico-social, não mais como um destino.
“Orlando” é uma obra em que sua narrativa ficcional transcorre dos séculos XVI ao XX. Nos oferta uma visão – a partir especialmente de Londres – dos hábitos, condutas e paisagens das diferentes épocas em que Orlando, personagem principal, vivência. As reflexões sobre a literatura de cada época abundam. Orlando quer ser poeta. Ou poetisa. Sim, Orlando ao longo do texto e do avanço de época vai transformar-se em mulher. Mais que uma obra com seus refinados recursos literários, escrita como se fosse biográfica, “Orlando” é transgressora em seu tempo e, ao que presenciamos, ainda chocaria em nosso tempo.
Nos permitam a reprodução de uma longa passagem do texto:
“Pois aqui novamente chegamos a um dilema. Embora os sexos sejam diferentes, eles se confundem. Em cada ser humano ocorre uma vacilação de um ser para o outro. E frequentemente são apenas as roupas que mantêm a aparência masculina ou feminina, enquanto interiormente o sexo é aquele oposto ao que está à vista. Das complicações e confusões que daí resultam, cada um teve experiências; mas aqui deixamos o problema geral e observamos apenas o efeito ímpar que isso teve no caso particular de Orlando.
Pois foi esta mistura de homem e mulher, um preponderando, depois a outra, que frequentemente dava à sua conduta inesperada reviravolta. As curiosas perguntariam, por exemplo, se Orlando era uma mulher, como não demorava mais do que dez minutos para se vestir? E suas roupas não eram escolhidas ao acaso e às vezes não estavam até um pouco gastas? Então responderiam, ainda, que ela não tinha a formalidade de um homem nem o amor masculino pelo poder. Ela possuía um coração excessivamente terno. Não suportava ver um burro ser espancado nem um gatinho ser afogado. Contudo, novamente observavam que detestava assuntos domésticos, levantava-se de madrugada e saía pelos campos no verão antes do nascer do sol. Nenhum fazendeiro conhecia melhor as colheitas do que ela. […] No entanto, é difícil dizer se Orlando era mais homem ou mais mulher, e isso não pode ser resolvido agora.” (p. 114)
As diferentes possibilidades de se experimentar masculinidades e feminilidades, ou mesmo a própria ideia de androginia, atravessam as palavras de Virginia Woolf. As imposições normativas de gênero funcionam como camisa de força que determinam lugares e condutas para homens e mulheres frente os quais teríamos que nos encaixar. Por isso, o discurso que está por trás daqueles que afirmam existir uma “ideologia de gênero” é, ao contrário do que afirmado, o mais ideológico e normativo-impositivo que existe; é o discurso que anula as possibilidades de autonomia dos sujeitos e de podermos experimentar a humanidade em sua plenitude.
Gostar de matemática ou de geografia, entender de mecânica ou de cuidados. Nada disso é destino, tampouco reduz aquilo que somos (ou o que não podemos ser). Talvez, se estivesse viva, Virginia Woolf diria: a construção das nossas identidades e as nossas vivências não cabem em um vestido, Damares. Seja azul ou rosa.
Lucas Menezes Fonseca
Texto fantástico e necessário!
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