PROUDHON E A DOMINAÇÃO DO HOMEM SOBRE A MULHER
O francês Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) é um dos mais célebres pensadores do século XIX. Foi bastante influente em sua época, fornecendo a base de ideias para uma das correntes mais significativas do socialismo moderno: o mutualismo. Esta corrente socialista, de caráter reformista, foi bastante presente na formação da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), em 1864. Proudhon não tomara parte neste processo e viria a falecer no ano seguinte, porém, havia deixado um significativo legado entre a classe trabalhadora francesa, a qual, junto a inglesa e sua tradição trade-unionista, foram as articuladoras da Associação.
Desta feita, a influência mutualista foi notável nos primeiros congressos da AIT e exerce hegemonia até o congresso da Basileia em 1869. Da mesma forma, uma das experiências mais importantes da história das lutas sociais e do socialismo, a Comuna de Paris de 1871, teve, em larga medida, a materialização de muito do ideário proudhoniano, seja no que confere aos seus aspectos mais positivos quanto também as suas fraquezas.
Este influente pensador chegou a afirmar-se como anarquista e acusou o regime de propriedade privada como um roubo e pilar das desigualdades sociais. O próprio Marx, a quem Proudhon declinou o convite de colaborar em uma associação política em 1846, chegou a considerar a obra “O que é a propriedade?” como o primeiro exame científico sobre a questão.
Sem dúvida, foi no pensamento político anarquista que Proudhon exerceu destacável influência, sobretudo, no que confere a sua perspectiva de reorganizar as bases econômicas e políticas da sociedade em um modelo federativo e, termo mais contemporâneo, autogestionário. Para Proudhon, o capitalismo era uma espécie de “feudalismo industrial” e para sobrepor este sistema defendia uma sociedade baseada num regime federativo de produtores.
Todavia, nosso objetivo não é discorrer sobre estes elementos, servindo apenas para pontuar e localizar o pensador em questão no espectro político. Nosso objetivo é abordar, sinteticamente e em seus pontos mais fundamentais, um aspecto menos conhecido de Proudhon. O pensador da dialética serial e suas antinomias desenvolveu uma perspectiva profundamente conservadora, defendendo o casamento e a família como base da sociedade e, no interior destas instituições, a definição de papeis sociais fixos (e desiguais) para homens e mulheres. É na obra póstuma “Pornocracia: ou as mulheres nos tempos modernos” que Proudhon desenvolve seu posicionamento, carregado de impropérios machistas e mesmo misóginos.
O debate teórico de fundo e a “biologização” das relações sociais de gênero
Publicada somente em 1875, a obra póstuma de Proudhon, objeto central de nossa análise, é uma resposta do autor a duas mulheres: Mme. Adam e Mme. d’Héricourt. Elas haviam reagido criticamente a posição de Proudhon a respeito do casamento e da condição da mulher, explanada em passagens de seu livro Da Revolução no Estado e na Igreja de 1858. Como forma de desenvolver suas ideais e posições, buscando assim refutar as críticas a ele desferidas, Proudhon escreve “Pornocracia”.
O título certamente causa curiosidade. Assim como temos democracia, oligarquia, plutocracia etc. para nos referirmos a diferentes regimes e formas políticas, pornocracia também teria o mesmo sentido. No caso, seria a forma que ele definiu para representar uma “desorganização” moral da sociedade com a “subversão” dos papeis de homens e mulheres, considerado, como veremos, como papeis fixos. A posição desenvolvida por Proudhon tem lógica interna, do ponto de vista da argumentação e categorias que utiliza, o que não significa que tenha sustentação, pois parte de premissas equivocadas e ignorando um elemento substancial da realidade histórico-social: o patriarcado.
Evocando a justiça e mobilizando sua dialética serial, a argumentação de Proudhon têm como base a ideia de que entre homens e mulheres não há igualdade, mas sim equivalência. Segundo ele, lutar pela igualdade não resultaria na emancipação das mulheres, como julgaria suas críticas. O efeito seria justamente a escravidão. Homens e mulheres possuiriam naturezas distintas que resultam em atribuições diferentes na sociedade, mas que, segundo o mesmo, seriam complementares.
Proudhon começa anunciando que suas antagonistas atacaram “a única de nossas instituições pela qual conservei o meu respeito, porque nela vejo uma encarnação da justiça.” (pos. 52). A instituição a que Proudhon se refere é o casamento, ou, em mais exata medida, a família nuclear burguesa. O dilema que Proudhon expõe é o seguinte: ou homem e mulher são iguais em sua “tripla manifestação física, intelectual e moral” (pos. 63), sendo, neste caso, iguais na família e nas funções públicas e domésticas; ou eles são apenas equivalentes, tendo, cada qual, “uma prerrogativa especial: o homem, a força; a mulher, a beleza” (pos. 66). A posição de Proudhon é que homens e mulheres são equivalentes, complementares em razão da força de um e da beleza da outra. Tais prerrogativas resultariam em “direitos e deveres” (distintos e em razão de suas funções) que deveriam ter como resultado “igualdade de bem-estar e honra” (pos. 68).
Simone de Beauvoir comenta as posições de seu conterrâneo, em passagem do clássico “O Segundo Sexo”:
Na obra intitulada La Justice, afirma que a mulher deve permanecer na dependência do homem; só ele vale como indivíduo social; não há no casal uma associação, o que pressuporia a igualdade, mas uma união; a mulher é inferior ao homem, primeiramente porque sua força física atinge apenas dois terços da dele, em seguida porque é intelectual e moralmente inferior a ele na mesma proporção: seu valor é no conjunto de 2x2x2 contra 3x3x3, ou seja, 8/27 da do sexo forte. (2009, p.131)
Tal disparate também é mobilizado no texto que analisamos, com Proudhon reforçando que há no homem maior “potência nervosa e muscular” e, por isso, “maior potência intelectual”. Entre outras considerações, para “comprovar” a maior predisposição natural do homem para as funções intelectuais, afirma: “[…] estabelecei a conta dos indivíduos dos dois sexos que se distinguiram na filosofia, no direito, nas ciências, na poesia, na arte, em suma, em todos os exercícios do espírito; confio em vós quanto ao resultado.” (pos. 280).
A posição de Proudhon está despida de toda historicidade e sociabilidade que marcam as relações sociais, tal como as de gênero. O que o socialista francês promove é a naturalização das relações entre homens e mulheres, ou, em outras palavras, parte de um argumento biologizante. Quando o autor expõe o papel e a função da mulher e, por conseguinte do homem, a determinados padrões, fixos e estáticos, destitui sua análise do caráter histórico-social que marcam as relações humanas.
A biologização das relações de gênero mobiliza condições naturais/biológicas da mulher, a exemplo da gestação e amamentação, como justificativa para estabelecer papeis e lugares sociais para as mulheres. Esse discurso impõe diferentes formas de socialização e educação que estimulam a reprodução, por exemplo, de características comportamentais ditas como feministas e masculinas. Impõe-se formas fixas e definidas na maneira de expressar a sexualidade, nas maneiras de se vestir, de expressar emoções, de falar etc.. Este leque de características comportamentais, de atitudes, de gostos entre outros exemplos, não é determinado naturalmente, mas por uma gama de fatores socioculturais e, como tais, suscetíveis a mudanças. Se há mais homens do que mulheres nas atividades de “exercício do espírito” esta explicação não se encontra nos argumentos apresentados por Proudhon.
A origem do patriarcado está associada a apropriação do homem sobre o próprio corpo da mulher. O patriarcado se consolida com o surgimento da propriedade privada dos meios fundamentais de produção, sendo, portanto, resultado de um processo histórico que transformou as mulheres em “objetos de satisfação sexual dos homens, reprodutoras de herdeiros, de força de trabalho e novas reprodutoras” (SAFFIOTI, 2004, p. 58).
O próprio casamento monogâmico surge historicamente como um “contrato sexual” sob a forma de subordinação da mulher pelo homem. Porém, moralmente essa monogamia é particularmente feminina que tem também o “dever conjugal” (sexual) em relação ao seu parceiro – o corpo da mulher enquanto propriedade do homem. Em sua defesa do casamento e da família do tipo nuclear burguesa, Proudhon chega ao ponto de afirmar que o chefe de família (homem) tem “o direito de vida e de morte” sobre a mulher (pos. 948). Ou seja, o feminicídio é um direito do homem na “defesa de sua dignidade”!
A ordem patriarcal impõe também uma divisão sexual do trabalho, a ser imbricada nas relações capitalistas de produção. Essa divisão não é de complementariedade, reciprocidade ou, em termos proudhonianos, de equivalência. Trata-se de uma relação de opressão e exploração. A divisão sexual do trabalho opera hierarquizando e separando. Hierarquiza os tipos de trabalho, valorizando aqueles que são imputados como “trabalho de homem” e desvalorizando aqueles que são considerados como “trabalho de mulher”. Separa, estabelecendo a esfera da produção para o homem e a esfera da reprodução, mais desvalorizada, como espaço prioritário para as mulheres.
Proudhon reforça todos esses elementos. Para ele, a família enquanto “a economia da existência” divide-se em produção e consumo, ficando o homem a encargo da primeira. Em suas palavras: “[…] pouco importa de que maneira, no futuro, o trabalho poderá ser dividido, organizado e repartido; em última análise, todas as operações viris e femininas são respectivamente dependências do arado e da panela.” (pos. 124).
Esta total incompreensão histórica e analítica a qual Proudhon incorre, o faz pôr o homem como ser apto para o trabalho intelectual e produtivo, reservando a mulher as funções domésticas e reprodutivas. A ideia de “natureza feminina” e a correlata “natureza masculina”, mascara uma estrutura desigual nas relações de gênero que só encontra sua explicação fora das determinações biológicas. As relações entre homens e mulheres são relações assimétricas de poder, estruturadas por um modelo patriarcal de sociedade.
Para concluir…
Explicitar e nomear as desigualdades, dando relevo a opressão das mulheres, é condição necessária para a construção de relações efetivamente igualitárias. Dissociar o capitalismo das relações patriarcais nos conduz de distorções de análise ao reforço ideológico dos próprios fundamentos que legitimam discursivamente as desigualdades de gênero. O mesmo pode ser dito quando o dissociamos da crítica antirracista.
Saffioti nos falava de um “sistema capitalista-patriarcal-racista”, onde classe, gênero e raça são as “três bicadas” da sociedade e não podem ser compreendidas separadamente – são relações enoveladas ou enlaçadas em um nó. Em termos mais contemporâneos e a partir da formulação das feministas negras, as diferentes formas de opressão e exploração devem ser compreendidas em sua interseccionalidade.
De acordo com Francisco Trindade (s.d., p. 69) a posição de Proudhon sobre a mulher, embora sendo “pouco justificável”, teria um “caráter mais episódico”. Expor esta dimensão profundamente deplorável de Proudhon não significa que o mesmo não possui, sob outros aspectos e temas, contribuições a dar. De qualquer maneira, se Pornocracia não resume Proudhon, este debate é uma boa medida dos enfrentamentos políticos e teóricos do pensamento feminista e de sua indispensável contribuição para a compreensão da realidade e construção de um projeto de emancipação humana.
Lucas Menezes Fonseca
Referências bibliográficas
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Perseu Abramo, 2004.
TRINDADE, Francisco. O essencial Proudhon. São Paulo: Imaginário, s.d.
PROUDHON, P-Joseph. Pornocracia: ou as mulheres nos tempos modernos. Arquivo Kindle. Biblioteca de Babel, 2015.
Que texto excelente !
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Obrigado!!
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