FILHOS DA MISÉRIA, “CAPITÃES DA AREIA”
“Crianças ladronas”. Esse é o título da matéria do jornal que afirma ser “o órgão das mais legítimas aspirações da população baiana”. Na matéria o jornal diz que um bando de “precoces criminosos”, composto por crianças de oito a dezesseis anos, tem cometido assaltos que “não deixa a cidade dormir em paz”. São os “Capitães da Areia”. Vivem na margem do mar, no cais, sobrevivendo à margem da lei – mas, também, acrescentamos, à margem de direitos e de proteção social. Crianças. Tratadas como caso de polícia.
No mesmo jornal seguem-se publicações de cartas, dentre outras, do secretário do chefe de polícia, do juiz de menores e do diretor do reformatório. Trocam acusações e jogam o problema de um para o outro. Assim começa o romance “Capitães da Areia” do escritor baiano Jorge Amado. A julgar pelos discursos insidiosos que presenciamos nos meios de comunicação e difundido em redes sociais, assim como a pressão de grupos conservadores pela redução da maioridade penal, os termos e adjetivos dado aos “desajustes” de crianças e adolescentes possuem impressionante – e deprimente – atualidade. Porém, esta obra de Jorge Amado veio a público em 1937.
Nos parece válido ressaltar o contexto político que marca o lançamento do livro, sendo censurado e alvo de um espetáculo inquisitório com queima de exemplares em praça pública. O ano da publicação coincide com a inauguração do Estado Novo, ou, como prefiro, da ditadura varguista. O período da Era Vargas (1930-1945) se fora marcado pela restrição de direitos políticos e cerceamento de liberdades civis, também incorporou alguns níveis de proteção trabalhista e social. Por sua vez, esta proteção não se estendeu ao conjunto das classes trabalhadoras – ficando restrito a categorias industriais e urbanas – tendo também, como passivo, a quebra de autonomia dos sindicatos a partir da incorporação destes as estruturas do Estado.
No que confere ao direito de crianças e adolescentes, na legislação brasileira já vigorava, aprovado ao fim de 1927, a Lei de Assistência e Proteção aos Menores ou “Código de Menores”. A maioridade penal era a partir dos 14 anos, ratificada pelo Código Penal em 1932. Comparado ao previsto em lei desde 1890, onde crianças a partir dos 9 anos de idade poderiam responder criminalmente, a legislação avançava. No entanto, o Código de Menores institui “Escolas de Reforma”, popularmente conhecidas como reformatórios. Embrião do que mais tarde seria conhecido como FEBEM, os reformatórios funcionavam como uma instituição disciplinar para “meninos delinquentes” entre 14 e 17 anos.
Entendido esses pontos, não será difícil compreender o ambiente político e social que dá o contexto a história dos Capitães da Areia. Dada as referências temporais presentes na obra, esta sugere uma narrativa que transcorre entre as décadas de 1920-30 na cidade de Salvador, Bahia.
De acordo com Antônio Candido (2015, p. 109), nos primeiros trabalhos de Jorge Amado “há um intuito ideológico ostensivo demais, que, por não ser incorporado como elemento necessário à composição, parece com frequência indigerida”. Tal seria o caso de “Capitães da Areia”? Se há explícito tom de denúncia social, dando relevo a situação de crianças pobres e desvalidas, a obra não se torna, em que pese certas obviedades nas trajetórias e desfechos de seus personagens, uma criação panfletária. Tão pouco o livro esgota-se como uma representação literária de uma realidade datada.
Fragmentos de um povo reagrupadas em laços de comunhão
Os personagens criados por Jorge Amado carregam consigo nomes curiosos, mas que nos informam também elementos de status e posição social. Com eles transitamos, em um passar de página, da tristeza compartilhada de um drama social à um humor, por vezes, sarcástico. A construção dos personagens, em seus conflitos e dilemas, representa não somente individualidades, crianças singulares, mas também os fragmentos de um amplo leque de condições e posições sociais, em suas hierarquias e papéis socialmente referenciados. Exemplos não faltam na obra.
O “Professor” gostava de ler e desenhar, trilhando pelo caminho da cultura e da arte, mas socializado nas ruas, na tragédia do abandono e da necessidade de se virar para ganhar seus trocados e sua sobrevivência. Nesse processo encontra o desprezo da gente rica, que o fazia refletir: “Por que aqueles homens bem-vestidos tanto os odiava?” (p. 100). Ele será o artista que em sua produção criativa busca dar voz e visibilidade aos esquecidos.
João-Grande é o fiel escudeiro de Pedro Bala, o personagem principal. Ele não é somente o João-Grande, era o “negro João-Grande”. Visto por muitos como “burro”, mas diria Pedro Bala que “quem for bom é igual a João-Grande, melhor não é…” (p. 261).
Sem-Pernas possui uma “perna coxa”. Atormentado pela surra e humilhação sofrida por policiais, alimenta o ódio (e o temor) a estes agentes do Estado. Nutre o mesmo sentimento de ódio aos ricos. Em sua participação nos golpes e roubos do grupo, entrava, reiteradas vezes, nas casas como um menino desamparado – e isto, certamente, não era mentira. Ganhava confiança, observava a dinâmica da casa e os pertences a serem roubados pelos Capitães da Areia. Para o Sem-Pernas seus alvos o abrigavam por remorso, no fundo sabiam que eram responsáveis pela sua miséria. Sua vingança era nos moldes do dito popular, daquele que se diz que come frio: “Sua grande e quase única alegria era calcular o desespero das famílias após o roubo, ao pensar que aquele garoto esfomeado a quem tinha dado comida fora quem fizera o reconhecimento da casa e indicara a outras crianças esfomeadas onde estavam os objetos de valor” (p. 125).
Volta-Seca, vêm do sertão e com orgulho afirma ser “padrim de Lampião”, aquele que era “dono do sertão, das caatingas sem fim”. Vai acompanhar os feitos de Lampião e seu bando pelas notícias de jornal – lidas pelo Professor – com a certeza que irá, mais tarde, se integrar ao seu bando. Enquanto não ocorria, caminha com os Capitães de Areia e seu líder Pedro Bala, o “dono da cidade, do casario, das ruas, do cais” (p. 102). Para ele a polícia é o “feitor dos ricos” (p. 248). Seu nome carrega uma condição de carência e o cangaço é a sua reação, reportada em composição poética por Jorge Amado: “Caatingas do sertão, olor das flores sertanejas, o manso andar do trem sertanejo. Homens de alpercatas e chapéu de couro. Crianças que estudam para cangaceiro na escola da miséria e da exploração do homem” (p. 248)
Pirulito, o pecador arrependido, convertido ao catolicismo convive com a angústia da dissociação entre aquilo que prega e aquilo que vive. Reza e pede perdão todos os dias. Enxerga um Deus que não é espelho do rico, mas sim uma imagem como a dele e de seus amigos, um Deus pobre, dos pobres. (p. 114-5). Sonha exercer o sacerdócio, a exemplo do padre José Pedro.
O padre, por sua vez, devotava uma dedicação para aquelas crianças “que quase não preocupava ninguém em toda cidade”, a não ser pela sensação de medo e insegurança. José Pedro não tinha recursos materiais a oferecer, mas tinha “palavras de carinho” e estava sempre junto para apoiá-los e confortá-los no que podia. A origem humilde do padre talvez explique sua empatia e cumplicidade pelos meninos pobres e abandonados. Ganhou a simpatia das crianças e a ira da alta cúpula da Igreja. “Coisa de comunista” e “inimigo da Igreja”, bradavam!
Se há menções a religiosidade católica, há também as de matriz afro, a exemplo do candomblé. Afinal, “a Bahia é de Todos-os-Santos”. A mãe de santo, Dona’Aninha, também sempre de prontidão para oferecer apoio espiritual as crianças do cais, sofre com a marginalização de sua religiosidade. O roubo da imagem de Ogum pela própria polícia dá o tom persecutório e racista que acompanha a história das religiões afro no Brasil. Sua queixa denota também uma consciência de classe e um pertencimento de negritude: “Não deixam os pobres viver… Não deixam nem o deus dos pobres em paz. Pobre não pode dançar, não pode cantar para seu deus, não pode pedir uma graça a seu deus”. E arrematava: “Não se contentam de matar os pobres a fome… Agora tiram os santos dos pobres…” (p. 97).
Menção também fazemos ao Boa-Vida, “um malandro completo”. Um “inimigo da riqueza e do trabalho, amigo das festas, da música, do corpo das cabrochas”. Há também o personagem galanteador e vaidoso, que não poderia receber outro nome senão Gato. Sempre preocupado com suas vestes e aparência, despista suas habilidades de trapaceador.
Dora é a única menina do grupo. Órfã e com um irmão ainda menor para cuidar, Dora transforma-se na matriarca das crianças do cais. Assume o papel de esposa de um, irmã para outro, mas de mãe para quase todos. Os Capitães da Areia constroem o seu arranjo familiar. Porém, engana-se que a Dora está reservada um papel mais tradicional, de mulher de casa. Dora quer também protagonismo nas ações do grupo.
De primeiro nome simples, negro, trabalhador das docas e agitador grevista. Carrega também no nome um personagem bíblico. Aquele que primeiro rompeu com as normas estabelecidas e ousou experimentar o fruto proibido. É João de Adão, a representação das condições precárias de trabalho. Um personagem que será também a ponte para novos horizontes.
Em cada personagem há um “tipo social”, um exemplar em fragmento do povo. Um povo que não é só da “cidade da Bahia”. Daí também a força de um enredo para atravessar as fronteiras do espaço e do tempo. São fragmentos do povo brasileiro. Os Capitães da Areia reagrupam estes fragmentos com laços de comunhão a partir de uma condição compartilhada de desejos e necessidades que emergem em meio a penúria. São laços de proteção, de amizade e cumplicidade. Laços de pertencimento a um grupo forjadas com as marcas de histórias de tragédia e abandono.
A liberdade é o nosso bem maior
O abrigo no cais e a vida como pertencentes aos Capitães da Areia dão um sentido de família e os fazem se reconhecerem como sujeitos no mundo. Para a “sociedade” estas crianças são vistas como infratores das normas, no entanto, elas também constroem, enquanto Capitães da Areia, seus próprios códigos de conduta: “Porque os meninos abandonados também têm uma lei e uma moral, um sentido de dignidade humana” (p. 194). Embora crianças, elas já “eram iguais a homens”. Se por vezes lembram que são crianças e querem brincar e se divertir como tais, suas vidas, no entanto, colocaram circunstâncias em que precisam “cuidar de si mesmos” e de serem “sempre responsáveis por si” (p. 244). Iguais a homens, não a crianças.
Se o sentimento de família, presente mesmo quando na ausência, acompanha os Capitães da Areia, é “a liberdade o sentimento mais arraigado” (p. 77). Este sentimento vai aflorar mais intensamente, ainda que por caminhos tortuosos, no líder dos Capitães da Areia: Pedro Bala. Sem família desde os cinco anos, vagueia há 10 anos pela cidade, onde “sabe de todas as suas ruas e todos os seus becos” (p. 29). Descobre por João de Adão, a história de seu pai, o Loiro, como era chamado. Um grande líder de greves, que morrera de bala em meio a mais um de seus discursos inflamados.
A medida que Pedro Bala vai conhecendo sua história, fascinado que fica pela de seu pai, ressignifica seus sentimentos de liberdade, que, como o sol, “é o nosso bem maior”. Pedro Bala se aproxima dos trabalhadores e de suas lutas, como uma greve, que é a “festa dos pobres”. Descobre que o caminho da liberdade é aquele traçado pela luta. Daí se afasta tanto do ódio de Sem-Pernas como da bondade de Pirulito e em diálogo com o primeiro afirmara: “-Nem o ódio, nem a bondade. Só a luta” (p. 236).
Em meio a uma tragédia urbana, que ainda assola o cenário urbano brasileiro, a obra de Jorge Amado é capaz de nos envolver com risos e lágrimas, com fé e esperança. Na luta.
Lucas Menezes Fonseca
Bibliografia:
AMADO, Jorge. Capitães da Areia. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
CANDIDO, Antonio. Iniciação à literatura brasileira. 7ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2015.