Jessé Souza e a “elite do atraso”

JESSÉ SOUZA E A “ELITE DO ATRASO”

Jessé Souza tem se transformado em uma referência da “sociologia pública” no Brasil. Aquela sociologia que pula os muros do debate acadêmico e/ou de seus iniciados e passa a estabelecer uma conversação com um público mais amplo, o instigando a reflexão do ambiente social que o cerca. É a tradução do “sociologês” para uma linguagem mais acessível com finalidade de influir nos rumos da sociedade.

Sob o mote do exercício de uma sociologia pública que devemos ler A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Esse esforço de tornar o debate mais palpável ao diálogo com setores para além do universo acadêmico e/ou militante é perceptível no texto, valendo-se, para tal, de doses de linguagem informal e como se conversasse com o leitor. Portanto, Jessé Souza discute questões e conceitos mais familiares a academia com relativa leveza. Eis uma das principais virtudes deste trabalho. Evidente que o custo disso é a pouca preocupação, em alguns casos, de fundamentar melhor suas conclusões, limitando-se, quando muito, a fazer indicações sobre estudos anteriores (em especial o que virou a coletânea de artigos, sob sua supervisão e organização, intitulado de “Ralé Brasileira”).

Livro - A elite do atrasoO objetivo do livro, como seu subtítulo indica, é fornecer a possibilidade de entendimento do cenário atual brasileiro diante do processo de golpeachment, usando aqui o neologismo do próprio autor. Para entender a construção desse processo, aporta-se a um debate de ideias e noções que permeiam o imaginário e os referenciais políticos e ideológicos de uma interpretação do Brasil. São tais ideias e noções que dão o fundamento e garantem a legitimidade do processo de golpeachment, tendo sido fomentadas, ao longo dos anos, não somente pela direita do espectro político, mas também pela esquerda.

Homem cordial, patrimonialismo e populismo são as ideias-força do liberalismo conservador brasileiro. São chaves conceituais que nos permitem compreender a lógica discursiva das elites brasileiras e suas difusoras: as classes médias e a grande mídia. Pretendemos sistematizar e explorar algumas das argumentações levantadas no livro.

As ideias-força do liberalismo conservador brasileiro e a síndrome de vira-lata

 

De acordo com o autor, as bases conceituais do liberalismo conservador brasileiro têm sua raiz no conceito de “homem cordial” e no “alongamento institucional” deste que dá forma a mobilização da noção de patrimonialismo. A cereja do bolo é o populismo na função de “estigmatizar qualquer presença das massas na política” (p. 135).

Jessé Souza elege Sérgio Buarque de Holanda como o “pai do liberalismo conservador brasileiro”. O autor de Raízes do Brasil fornece, para interpretação da sociedade brasileira e adquirindo ampla aceitação, as noções de homem cordial e patrimonialismo. De acordo com Jessé Souza, o homem cordial “é a concepção do brasileiro visto como vira-lata, ou seja, como o conjunto de negatividades: emotivo, primitivo, personalista e, portanto, essencialmente desonesto e corrupto” (p. 191). Patrimonialismo, por sua vez, “é uma espécie de amálgama institucional do homem cordial, desenvolvendo todas as suas virtualidades negativas dessa vez no Estado” (p. 191). Acrescenta-se Raymundo Faoro, autor de Donos do Poder, como o “historiador oficial” do liberalismo conservador brasileiro e que desenvolve o conceito de patrimonialismo.

Elencado a condição de chave-mestra da interpretação do Brasil, o patrimonialismo passa a assumir “o lugar que a noção de escravidão e das lutas de classe que se formam a partir dela deveria ocupar” (p. 193). Ao secundarizar (ou mesmo ocultar) a herança do processo escravista e as lutas de classes, cria-se uma perspectiva em que a “corrupção patrimonial substitui a análise das classes e suas lutas por todos os recursos materiais e imateriais escassos.” (p. 193).

A noção de patrimonialismo faz alusão ao pensamento do alemão Max Weber, onde o autor dedica algumas páginas afim de demonstrar que o debate feito pelos pensadores brasileiros criticados não corresponde ao rigor da análise weberiana. Jessé Souza, que assume uma filiação teórica weberiana, sobre a qual pôde apreender “a importância da dominação ideal e simbólica no mundo social” (p. 200), pontua que patrimonialismo é um conceito “contextual e historicamente determinado” ao império chinês (p. 204), perdendo, na sociologia brasileira, “qualquer contextualização histórica” (p. 206). Além disso, por “generalizações sociológicas”, o conceito torna-se “um equivalente funcional para a mera intervenção estatal” (p. 206).

Patrimonialismo, assim como homem cordial, tão somente camuflaria a lógica operativa dos poderes, tendo a função, como repetidas vezes afirma Jessé Souza, “fazer o povo de tolo” ao esconder “as reais bases do poder social entre nós”. A “oposição entre público e privado”, estabelecida pelo pensamento liberal conservador de que trata o nosso autor, é central para esta compreensão, pois “assume a forma do senso comum que percebe apenas o Estado como uma configuração de interesses organizados” (p. 137). O autor nos oferece uma boa analogia de funcionamento do capitalismo e da articulação, obliterada pelo liberalismo, existente entre Estado e mercado, resumindo o exposto até aqui.

“Se compararmos nosso capitalismo com o narcotráfico, o político corrupto é o aviãozinho do tráfico, quem fica com as sobras; a boca de fumo que faz o dinheiro grande é o mercado de rapina selvagem que temos aqui. O conceito de patrimonialismo serve, precisamente, para encobrir os interesses organizados no mercado, que funcionam para se apropriar da riqueza social, já que a noção de privado é absurdamente personalizada, permitindo todo tipo de manipulação. A real função da noção de patrimonialismo é fazer o povo de tolo e manter a dominação mais tosca e abusiva de um mercado regulado completamente invisível.” (p. 208-9)

Esta incompreensão do real funcionamento do capitalismo possibilita torna invisível “os interesses privados que realmente dominam o Estado”, da mesma forma que promove o “rebaixamento geral dos brasileiros, que passam a tratar não apenas os estrangeiros, mas os interesses estrangeiros, como superiores e produto de uma moralidade superior.” (p. 136-7). Sob o mote deste arsenal conceitual-ideológico de “viralatismo” brada-se a privatização das empresas públicas e estatais e a demonização dos serviços públicos.

Das marcas da escravidão e dos processos de socialização: classes e desigualdades sociais

Ainda que reconhecendo os limites de Gilberto Freyre e de sua perspectiva, Jessé Souza reserva boas páginas para discuti-lo. Considera que o pensador pernambucano revela o traço mais marcante da formação social brasileira:

“É precisamente como uma sociedade constitutiva e estruturalmente sadomasoquista – no sentido de uma patologia social específica, onde a dor alheia, o não reconhecimento da alteridade e a perversão do prazer transformam-se em objetivo máximo das relações interpessoais – que Gilberto Freyre interpreta a semente essencial da formação social brasileira.” (p.49)

A escravidão é a semente da sociabilidade brasileira, e não o patrimonialismo ou a “corrupção”. As ideias-força do liberalismo conservador são ritmadas por uma mentalidade escravocrata reinante na sociedade brasileira que redunda em uma combinação de sentimento de “viralatismo” quanto ao estrangeiro (estadunidense ou europeu) com a de um “ódio ao pobre” que bloqueia possibilidades de ascensão social e de busca dos “recursos materiais e imateriais”, tal como viajar de avião ou ascender ao ensino superior. Serão as classes médias os principais agentes propagadores deste ideário.

A passagem do trabalho escravo para o trabalho formalmente livre “manteve todas as virtualidades do escravismo na nova situação” (p. 102), o que faz o autor apontar que “a grande questão social, econômica e política do Brasil é a existência continuada dessa ralé de novos escravos” (p. 106). Jessé Souza utiliza-se dessa questionável expressão – “ralé de novos escravos” – para destacar “a crença de que existe gente criada para servir outra gente”, o que condena as estas pessoas os “serviços brutos e manuais desvalorizados”. Este ponto está também articulado com uma raiz racista da sociedade brasileira, onde “o branco era (e continua sendo) antes um indicador da existência de uma série de atributos morais e culturais do que a cor da pele” (p. 71). Nesta lógica, cria-se “a presunção de que alguém de origem africana é ‘primitivo’, ‘incivilizado’, incapaz de exercer as atividades que se espera de um membro de uma sociedade que se ‘civilizava’ segundo o padrão europeu e ocidental.” (p. 71). O desprezo ou mesmo o ódio ao escravo, tornou-se, na formação do capitalismo brasileiro, em ódio ao pobre.

Para a além das mentalidades constituídas e das marcas simbólicas reverenciadas, o autor destaca um aspecto específico da “moral capitalista” e que se reproduz a partir de uma luta desigual oriunda das diferentes socializações familiares existentes nas classes sociais. Acusa Florestan Fernandes de não considerar a “hierarquia moral” específica do capitalismo (“opaca e não transparente entre os indivíduos”) que produz “a distinção que legitima as novas formas de privilégio quanto o preconceito que marginaliza e oprime em violência aberta ou muda” (p. 81).

Jessé Souza defende a socialização primária (familiar) como central para entender as classes, sua formação e de como ela define “todas as chances relativas de cada um de nós na luta social por recursos escassos” (p. 88). As classes sociais são apreendidas como um fenômeno sociocultural, o que implica, portanto, que as lutas de classes são também lutas por capital, não somente econômico, mas também cultural e capital social de relações pessoais (p. 90-91). Capital cultural tendo relação com o conhecimento e o “capital social de relações pessoas” com interesses e afetividades.

Ao discutir as classes médias, segmento que ocupa um lugar central na análise dos processos políticos em Jessé Souza, elenca-se quatro nichos ou frações: 1. Protofascista; 2. Liberal; 3. Expressivista (“classe média de Oslo”); 4. Crítica. Sem explicar a origem dos percentuais, a maior fração seria a liberal com 35% do total, seguida da protofascista com 30%. (p. 176). A fração expressivista é aquela que defende o meio-ambiente, o respeito das minorias identitárias, entre outros pontos, porém, não há “crítica social que envolva efetiva distribuição de riqueza e de poder” (p. 175). O exemplo prático (e questionável) seriam os “eleitores da candidata Marina Silva” (p. 176). A menor fração é a crítica, perfazendo 15% dos cálculos do autor, e “tem que navegar em mares turvos, já que em luta constante contra a corrente dominante” (p. 177).

A classificação da classe média nessas quatro frações corresponde a uma perspectiva de linhagem weberiana, considerando as “situações de classe” em virtude de status e poder social, mas acrescida de questões referenciadas em atitudes e posicionamentos políticos e ideológicos. Embora seja um exercício necessário, definir diferentes frações de classe e entender seus alinhamentos político-ideológicos, a pouca clareza dos critérios de classificação utilizados nos faz ver nesse debate um ponto fraco do livro, quando poderia ser justamente o inverso.

Todavia, Jessé Souza com a argumentação da socialização familiar como central para entender a formação e reprodução das classes sociais, indica que os privilégios recebidos pelos indivíduos de classe média, no que confere sobretudo aos capitais cultural e de relações pessoais, faz com que seu “sucesso escolar”, seu prestígio social e boa remuneração já em vida adulta, seja percebido como “o milagre do mérito individual” (p. 98). Estes capitais implicam e foram essenciais para o acesso e consumo de bens culturais, no aprendizado em meio a um ambiente social que valoriza a atitude reflexiva e, sobretudo, para a construção do “pensamento prospectivo”, ou seja: “a percepção do futuro como mais importante que o presente” (p. 98).

Alijadas destes capitais, o grosso da socialização da “nova ralé de escravos” está calcada nas urgências do presente (sem planejar futuro) e imerso em um contexto social que forma “seres humanos com carências cognitivas, afetivas e morais, advindo daí sua inaptidão para a competição social” (p. 100). Ou mais do isso, uma vez que será “não só a classe que todas as outras vão procurar se distinguir e se afastar, mas, também, vão procurar explorar o trabalho farto e barato” (p. 103).

A perversidade social completa-se quanto este processo de socialização, alimentado por uma moral capitalista, mas forjado por uma estrutura e mentalidade escravista, fere mortalmente a “autoestima” e “autoconfiança” dos indivíduos. Na escravidão esta violência se manifestava em contexto “na qual o escravo abdica de ter interesses próprios para melhor satisfazer os desejos e necessidades dos senhores”. Na contemporaneidade, revela-se no comum exemplo “de babás e empregadas que criam os filhos do patrão ‘como se fossem seus’” (p. 103).

Algumas considerações finais

Em que pese um tom autoproclamatório presente no livro, o debate que Jessé Souza levanta é essencial em meio à cortina de fumaça que o tema da corrupção criou entre nós. Ele não é o primeiro a tecer críticas as obras e conceitos de autores clássicos da sociologia e de (re)localizar o processo escravista como central para entender a dinâmica social e política brasileira, tal como o mesmo faz parecer, mas, conduz com firmeza e sob ângulos interessantes.

No entanto, há em toda a produção recente do autor a disputa de uma narrativa frente à um processo golpista que tem como culminância (ou talvez etapa) o impeachment da presidenta eleita para segundo mandato, Dilma Rousseff. Um dos principais instrumentos desse processo foi a grande mídia, representada sobretudo pela Rede Globo, assim como a operação Lava Jato da polícia federal.

Através de uma lógica seletiva, canalizando a culpa e os problemas de corrupção apenas no PT e em seu governo, este ataque a “soberana popular” e a “jovem democracia brasileira” significou também pôr em dúvida o próprio princípio de igualdade social. De acordo com Jessé Souza, como nos governos petistas houve políticas que significaram ascensão social (como a ampliação do acesso ao ensino superior), o tratamento dado a este partido como corrupto e criminoso, “torna suspeita a própria demanda por igualdade”, como se esta fosse “mero instrumento para outros fins” (p. 223).

Afirma o sociólogo que enquanto a mídia nos distrai com o que ele chama de “corrupção dos tolos”, representada pelas propinas dos políticos, a “corrupção real” segue agindo livremente. Esta é fomentada pelo mercado, nos mecanismos da dívida pública, em emendas constitucionais que congelam os gastos públicos em áreas sociais, fazendo sangrar o orçamento público e as oportunidades para os mais pobres. A narrativa do golpe tecida por Jessé Souza tem como disparador as manifestações de junho de 2013. Segundo o mesmo, a data foi o gatilho para que se criar o “espantalho da criminalização da política” com o objetivo de que “a economia dispense a mediação política” para assim garantir “obediência cega à elite da rapina” (p. 233).

Nossa perspectiva entende a política para além do Estado e do jogo parlamentar, não somente no sentido da (por vezes) inofensiva compreensão de que “a política está em todo lugar” e “tudo é política”, mas, efetivamente, no entendimento de que uma outra forma de fazer política deve apontar para o rompimento do fazer político na lógica operativa do poder capitalista e financeiro. Deve-se buscar outros instrumentos de ampliação de participação e protagonismo popular.

Jessé Souza aponta corretamente estar nos interesses organizados de mercado a principal força corruptora da sociedade por meio da submissão do Estado aos interesses daquele – e, por isso, “o Estado é privatizado em todo lugar” (p. 137). No entanto, não indica os limites e, sobretudo, a funcionalidade que o sistema político representativo-parlamentar tem para a reprodução do mercado e manutenção dos elementos constitutivos da “elite do atraso”. O político é o “aviãozinho” do mercado e continuou sendo mesmo com governos mais progressistas nas áreas sociais. A “elite do atraso” e sua mentalidade não será derrubada nesta arena de disputa do Estado, pois nesse espaço é ela quem joga as cartas.

Lucas Menezes Fonseca

Bibliografia:
SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato.
Rio de Janeiro: LeYa, 2017.

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