Por que ler “Meio sol amarelo”?

POR QUE LER “MEIO SOL AMARELO”?

“Meio Sol Amarelo”, publicado em 2006, foi o segundo romance da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. O texto atravessa temas recorrentes em sua produção literária, como o colonialismo, o racismo, a extravagância dos ricos da África pós-colonial, tramas familiares e amorosos, as tradições e costumes, a condição da mulher e os conflitos étnicos-raciais e religiosos.

O território hoje pertencente a Nigéria esteve sob a marca da colonização britânica de fins do século XIX até o ano de 1960 quando adquiriu sua independência. Constituída em Estado-Nação, mas ainda fortemente marcada pela influência da colonização britânica, a Nigéria passou a ser palco de violentas disputas internas (alimentadas também externamente) que se manifestam entrelaçados à conflitos étnicos, em um vasto território que abrigara múltiplas identidades – a exemplos dos hauçás, iorubás e igbos/ibos. Estes últimos, vítimas de massacres, irão empreender uma luta por autodeterminação resultando em uma guerra de secessão em fins dos anos 1960 até 1970, com o objetivo de formação da República de Biafra. Da bandeira de Biafra constam listras vermelha, negra e verde, com o “meio sol amarelo” ao centro. Um dos personagens explica o significado: “O vermelho era o sangue dos parentes massacrados no Norte, o negro era em sinal de luto pelos mortos, o verde era pela prosperidade que Biafra teria e, por fim, o meio sol amarelo, que significava um futuro glorioso” (p. 328).

Bandeira Biafra

Reportando a este contexto histórico, que, estima-se, ceifou a vida de cerca de 1 milhão de pessoas, e acrescentando-se ingredientes de geopolítica internacional, com a disputa entre potências mundiais pela influência na região, Chimamanda nos oferece grande romance e que exploramos nesse texto alguns de seus pontos.

Da estrutura da obra e dos personagens

O romance é dividido em três partes que vão marcar a trajetória em antes, durante e depois da Guerra de Biafra, porém, não são dispostos em ordem cronológica. A narração intercala as perspectivas de três personagens: Ugwu, Ollana e Richard. Um garoto pobre, uma mulher de origem étnica ibo e rica, além de um jornalista britânico.

Chimamanda - Meio sol amareloUgwu é de uma pequena aldeia, de onde parte para o trabalho doméstico na casa de Odenigbo, este, professor de matemática da universidade e militante pela República de Biafra. O trabalho do menino abre a ele um novo e desconhecido mundo. Ugwu se espanta em saber que há pessoas que podem comer carne todo dia, se encanta com a geladeira que conserva a comida e a importância da pasta de dente na higiene bucal. O contraste de realidade é gritante. Ugwu guardará sempre uma relação de fidelidade e devoção aos seus patrões. “Sim, sah”, “Tudo bem, sah”. Diz repetidas vezes.

A história de Ugwu não é apenas de miséria e resignação. Fugindo dos estereótipos e da “história única”, Chimamanda também explora a capacidade e as potencialidades de Ugwu através do seu encanto pelos livros, pela leitura e pela escrita. Das reuniões de professores e militantes na casa do “Patrão”, recheadas de debates acadêmicos e políticos, Ugwu que de início pouco ou nada entendia, aguçava a sua curiosidade pelo conhecimento. Seu “Patrão” vai coloca-lo na escola e, a certa altura, conversando com Ugwu, alertava para a importância da educação lançando o questionamento: “Como é que podemos resistir à exploração se não temos as ferramentas para entender o que é exploração?”. O menino negro e pobre da aldeia vai nos ensinar que as ferramentas do conhecimento e da escrita podem ser manuseadas por todos, desde que lhes sejam dadas as condições e oportunidades necessárias. Forte impacto irá causar nele a leitura de Frederick Douglass, um ex-escravo norte-americano. Lê e relê, decorando trechos e os citando como se fosse um mantra: “Mesmo que me custasse a vida, eu estava decidido a aprender a ler. Mantenha os negros longe dos livros, mantenha-nos na ignorância, e seremos sempre escravos.” (p. 417). O livro lhe deu “tristeza e raiva”.

No entanto, as circunstâncias dos acontecimentos conduzirão Ugwu a caminhos inesperados e capazes de nos provocar sentimentos ambíguos em relação a este rico personagem. Marcas da guerra que irá carregar como um tormento para o resto de sua vida: “A cabeça de Ugwu doía. As coisas estavam mudando muito rápido. Ele não estava vivendo a vida; a vida que o estava vivendo. […] Eles o cansavam. A guerra o cansava.” (p. 422).

A segunda personagem que nos oferece sua perspectiva feminina é Ollana. De origem ibo, goza dos privilégios materiais de sua família, uma vez que seu pai é dono de uma luxuosa rede de hotéis. Porém, vê-se distanciada de seus familiares mais próximos, por vezes mais identificados com o colonizador britânico do que com seu povo. No eclodir da guerra de secessão seus pais fogem para Londres. Ollana, por sua vez, apesar de sua educação cosmopolita, ou talvez, mais precisamente eurocentrada, procura sua ancestralidade: “Ela bem que gostaria de ser fluente em huaçá e ioruba, como o tio, a tia e os primos; trocaria de bom grado seu francês e seu latim por essas línguas.” (p. 53).

Casada com Odenigbo, ingressa também na universidade para lecionar sociologia. Com sua irmã gêmea, Kainene, de personalidades díspares, manterá uma relação intensa mesmo quando à distância, mas sempre transitando entre extremos. A relação entre as irmãs nos indica também uma analogia com o “meio sol amarelo”. São metades que separadas em tempos de paz, se unem em tempos de guerra. Sobre Ollana, pesará também as dores que tantas mulheres carregam e que se manifestam mais vivamente quando estas reivindicam protagonismo e um posto na luta. As marcas do machismo atravessam suas vivências e dilemas.

Mantendo um relacionamento com Kainene, Richard é o terceiro personagem central na narrativa. Inglês e jornalista, sonha em escrever um livro sobre a guerra. O olhar estrangeiro aparece em sua narrativa, mas o personagem busca ser um contraponto a visão hegemônica. Possui sincero interesse pela região e toma parte por Biafra. Corre riscos, porém sua condição de homem branco, britânico, lhe permite também vantagens. A certa altura da história, Richard irrita-se com dois jornalistas americanos do norte. Os comentários jocosos sobre as mulheres negras e africanas, assim como a visão sobre a guerra em si, o faz refletir “sobre a regra do jornalismo ocidental: cem negros mortos equivalem a um branco morto”. (p. 426).

Por que ler “Meio sol amarelo”?

Chimamanda-Ngozi-Adichie

Dona de uma escrita fácil, mesmo quando estar a descrever, inclusive com minuciosidade, os horrores de uma guerra, Chimamanda nos provoca sentimentos diversos e, por vezes, ambíguos em relação aos seus personagens. Ambiguidade, pois são personagens imersos em um contexto de extremidades. As qualidades se entrelaçam aos vícios e as atitudes repugnantes. São personagens vivos e que nos ofertam diferentes dimensões de um mesmo contexto.

A leitura de “Meio sol amarelo” nos aproxima de uma série de questões que nos são contemporâneas e que não diz respeito apenas a Nigéria ou mesmo a África. O sudeste da Nigéria, que seria a região de Biafra, é também um lugar de petróleo. O acesso e controle de riquezas sempre foram lócus de disputas geopolíticas e mobilizam imperialistas. Os efeitos de uma guerra, com dissensos internos e a formação de uma massa de refugiados e seus estigmas estão também presentes no livro.

Os diálogos com reflexões sobre colonialismo, racismo e as possibilidades futuras para continente africano são marcantes e intercalam com passagens que reportam a militarização da vida, os privilégios militares e os abusos de poder. O cotidiano de uma geração, socializada em meio aos conflitos bélicos e entrelaçados a questões étnicas-raciais e religiosas, onde crianças transformam estilhaços em brinquedos e guerra em brincadeira (isso quando não são também recrutadas para a guerra), não pode ser ignorado nesse processo. Os conflitos étnicos existentes na Nigéria e extensivos em larga medida ao continente africano, é posto como política de colonização, uma vez “que manipularam as diferenças entre as tribos e garantiram que a união jamais se concretizaria” com o efeito prático de facilitar “a governança de um país tão grande” (p. 198). Trata-se, ao fim, da lógica de dividir para dominar. A própria Nigéria, enquanto Estado-Nação, e o próprio debate racial é posto em interrogação, como uma criação europeia. Em outras palavras, como afirma em diálogo o personagem Odenigbo: “Eu sou nigeriano porque um branco criou a Nigéria e me deu essa identidade. Sou negro porque o branco fez o negro ser o mais diferente possível do branco. Mas eu era ibo antes que o branco aparecesse” (p. 31).

Há momentos de reflexões ideológicas, momentos de humor, mas também aqueles que nos provocam sensações de profunda tristeza ou mesmo repulsa. A guerra é uma expressão da barbárie humana, não somente pela escassez e a fome que ela provoca. Há casos de estupro coletivo, realidade que acompanha as mulheres em tempos de paz e que se acentuam em tempos de guerra. A trama que envolve o ponto é um dos momentos mais tristes e densos do livro.

Em nota ao final do livro, Chimamanda Adichie agradece a familiares e suas memórias como fonte de inspiração e informação sobre o período que cobre seu romance. Nós agradecemos a Chimamanda por colocar em xeque nossas perspectivas e visões eurocêntricas, nos convidando a descolonizar nosso pensamento com a apresentação de olhares sob diferentes e complexas perspectivas que não cabem nos estereótipos e nas categorias a qual costumamos recorrer. A autora negra, nascida na Nigéria, nos ensina que é preciso (re)escrever a história a partir de novos olhares, vivências e memórias.

Lucas Menezes Fonseca

Bibliografia:

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Meio sol amarelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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