“Setenta”: entre o ufanismo e os porões da ditadura

“SETENTA”: ENTRE O UFANISMO E OS PORÕES DA DITADURA

“Noventa milhões em ação, pra frente Brasil, do meu coração / Todos juntos vamos, pra frente Brasil, salve a seleção! / De repente é aquela corrente pra frente, parece que todo Brasil deu as mãos…”

Em meio ao clima festivo e ufanista da Copa do Mundo de 1970, realizada no México, e justo no dia da finalíssima entre o lendário escrete canarinho e a seleção da Itália, o bancário Raul é solto após ficar por cerca de nove dias preso. Neste tempo foi submetido a sessões de tortura. Quando o fora preso, não sabia a razão. Quando soube, entendeu que não havia razão. Devoto de Nossa Senhora da Aparecida, jovem de 25 anos, tímido e de poucos amigos nos dizeres de sua mãe, Raul mantinha uma insuspeita rotina de um cidadão trabalhador. De pouca festa e seguindo da “casa pro trabalho, do trabalho pra casa” Raul jamais imaginaria que pudesse ser tratado como um… “comunista de merda!”.

O livro “Setenta” (2019) de Henrique Schneider é uma ficção histórica e se desenrola no ano em que o título da obra sugere. Reaviva traços do período da ditadura militar brasileira de 1964-85: o anticomunismo, a instrumentalização nacionalista, o falseamento da realidade, a tortura e o desaparecimento. O clima da final da Copa do Mundo de 1970 é remontado, onde o ufanismo patriótico daqueles dias – expressos na música da época citada em nossa epígrafe – também servia aos discursos de “Brasil: ame-o ou deixei-o” alimentados pelo regime. Paradoxalmente, há na obra uma homenagem a inesquecível seleção de 70. Os gols brasileiros são belamente narrados, como se estivéssemos trocando passes com Gerson, Pelé, Tostão e Jairzinho.

Setenta - capa

O texto não possui linearidade temporal, indo e voltando no tempo, com capítulos que vão relatando os nove dias que correm o drama da personagem principal, o bancário Raul. Intercala também capítulos com a saga de sua mãe, procurando e pedido socorro pelo filho na delegacia de polícia, na imprensa, na Igreja e com sua vizinha. Nestes capítulos, que estão entre os melhores do livro, some o narrador onipresente para dar lugar a própria fala de Irene, uma mãe em busca de seu filho desaparecido: nem preso, nem morto.

O bancário Raul não era militante de organização nenhuma, tampouco interessava-se por política. A sua identidade estampava a foto de “quem acredita nas instituições, na ordem e no progresso” (SCHNEIDER, 2019, p.42). É interessante a escolha do autor, pois temos um “cidadão comum” que sofrerá brutalmente os mandos e desmandos do regime. Uma narrativa histórica bastante comum, oriunda de setores militares, conservadores ou até mesmo liberais, é a de que o aparato repressivo da ditadura atingiu apenas a militância de esquerda, em especial, aqueles que buscaram as vias da resistência armada. Ainda que fosse verdade, essa compreensão já seria absurda, uma vez que naturaliza a violência do Estado à margem dos direitos humanos como forma de resolução de divergências políticas.

Na trama de Schneider, Raul é confundido com um militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), organização que havia fracassado em tentativa de sequestro – a certo ponto amadora e atrapalhada – do cônsul americano Curtis Curtti em 4 de abril de 1970. É um fato histórico brevemente relatado em um dos capítulos, sendo o único anterior aos dias finais da Copa do Mundo realizada em junho daquele ano. Raul, preso por engano, confundido com um “terrorista”, irá perceber que “o país não era a realidade cor-de-rosa escrita nos jornais, não era tudo simples ordem e progresso” (Id., 2019, p.82).

OS PORÕES DA DITADURA

O final dos anos 1960 e os primeiros anos dos 70 foi o período de enrijecimento ainda maior do regime militar. É quando se consolida a máquina repressiva fundada no tripé vigilância – censura – repressão (NAPOLITANO, 2018, p.128). Tempos em que as equipes de tortura são montadas e estas utilizam centros clandestinos para suas práticas. São os porões da ditadura. Em “Setenta”, assim será descrito o cárcere encontrado por Raul (chamado por seus algozes de “hóspede”):

“A cela era um cubículo quadrado, com pouco mais de dois metros, sem nenhuma janela, trancada por grandes espessas de ferro e onde não se adivinhavam a noite e o dia. As três paredes estavam cheias de garranchos e marcas, alguns nomes e datas, pequenos desenhos e frases, feitos sabe-se lá por quem e com que instrumento. Ele olhou para cima e não viu qualquer bico de luz no teto baixo e escuro. Num dos cantos, havia um balde sujo, que Raul adivinhou em aflição a que serviria, e uma pia – vazia e ainda mais imunda. No chão úmido de cimento queimado, estava um colchonete fino e encardido. Sobre o colchonete, alguém havia disposto um cobertorzinho puído e cinzento. O cobertor estava caprichosamente dobrado, numa espécie de ironia cruel.” (SCHNEIDER, 2019, p.29-30)

Em seu tormento na cela, já submetido a torturas e interrogatórios, pensava no que poderia inventar para sair daquele pesadelo, talvez até acusar falsamente outras pessoas. Descartava. Pensava em suicídio. Não, acreditava que tudo poderia ser esclarecido, que ele pudesse voltar pra casa. Seus dias eram de tormento e medo, pois a morte o cercava.

“[…] alguém poderia entrar pela porta daquela cela e enchê-lo de pancadas ou matá-lo sem qualquer palavra ou motivo, sem que nenhuma notícia chegasse além do corredor. Depois, jogariam seu corpo em qualquer baldio distante, à espera dos urubus, então passariam água e sabão no sangue seco da cela e tudo feito: o lugar estava pronto para receber o próximo condenado, sem que Raul nunca houvesse verdadeiramente estado ali, seu corpo era um não corpo. Esta incerteza, talvez ela apavorasse mais que tudo.” (Id., 2019, p.69)

Até ser preso, Raul pouco ouvira falar da ditadura – esta palavra que só a muito custo ele pronunciou. Ouviu falarem de “torturas, desaparecimento e mortes”, porém em sua mente estava a certeza em forma de reflexão: “por que se preocupar com esse assunto, se nada daquilo lhe dizia respeito?” (Ibd., p.64).  Afinal, o noticiário afirmava que as medidas de repressão eram contra o que chamavam de “terroristas”, de pessoas subversivas e taxadas como criminosas.  A escuridão de sua prisão havia desfeito essa ilusão.

“E quantos outros estarão como eu, a esmo e sem esperança, enquanto os medianos, olhos fechados e ignorantes, fazem suas compras e vão ao trabalho e leem notícias do jornal e dão risadas e torcem por seus times e fazem suas orações e passeiam os cachorros na claridade falsa dos dias, sem saber dos gritos que acontecem nos porões próximos? Esta vida calma, o que saberá?” (Ibid., p.40-41)

Outro ponto forte do livro é sobre a tortura. O autor mostra a face sádica de torturadores, mas também a burocrática, a “profissional” enquanto parte integrante de uma lógica de dominação. Raul será submetido a duas sessões de tortura. Na primeira será a “cobaia” em uma “aula”, uma formação dada por um chefe de polícia que destaca ser preciso executar com “profissionalismo”, pois “há regras”. Na ditadura as equipes de torturadores manuseavam técnicas e instrumentos, dominando a variedade e a intensidade do uso delas. Em “Setenta” o bancário é posto no “pau-de-arara”, apresentado como um instrumento de tortura “genuinamente brasileiro” pelo orgulhoso torturador-instrutor. Seu corpo vai virando “um pedaço de carne pendurado” ao longo da sessão.

O livro destaca o sadismo dos algozes de Raul, homens de “respiração ofegante e ansiosa” e onde “havia em seus olhos uma espécie de brilho feliz”. Uma monstruosidade incompreensiva para ele: “Por que faziam isso, esses monstros? Por que tão monstros? Aqueles que mostravam prazer em bater, aqueles que fingiam não ter esse prazer – todos iguais, todos monstros.” (Ibid., p.65).

Para Marcos Napolitano (2018, p. 137) o torturado não é um “sádico errante a procura de vítimas”. A tortura era um sistema, ou seja, “organizado, burocratizado e abrigado no aparelho civil e militar do Estado”. É parte do sistema geral de repressão que mobilizava procedimentos legais e ilegais. Compondo a face ilegal do sistema, ou seja, sendo jamais admitida como um expediente utilizado pelo Estado brasileiro e, em particular, pelo regime militar, o torturador seria tão somente um “funcionário público padrão” a cumprir ordens.

A tortura atua como uma forma de “destruir a subjetividade do inimigo”, pois submetido a uma “dor física extrema”, tem-se, “a partir dela, a desagregação mental, o colapso do sujeito, o trauma do indizível” (Id., 2018, p. 140). Servia para construir um “círculo do medo” estacando adesões a resistência ao regime.

ISTO AINDA ACONTECE…

Ulstra - cartaz fag

Raul, quando solto, fica exposto ao sol e a claridade que “cega os olhos”. Recebia aquele sol em uma manhã de 21 de junho de 1970, dia em que Carlos Alberto Torres erguia a taça do tricampeonato mundial de futebol para o Brasil. O cidadão comum, preso “por engano” em um contexto em que “todos são culpados até que se prove o contrário”, é lembrado por seus facínoras quando é posto em liberdade: “isso que tá acontecendo, nunca aconteceu! Tu nunca foi preso!”. Solto, Raul deveria permanecer preso no silêncio de suas dolorosas memórias.

Em um país em que os torturadores seguiram impunes, sendo muitas vezes até reverenciados, os legados da ditadura ainda perseguem a nossa história. Estabelecer a memória e a verdade histórica é uma luta fundamental, sem a qual não poderá haver justiça. “Setenta”, sob a forma literária, reaviva esse passado que ainda opera no presente. O Estado brasileiro, pós-ditadura, manteve sua máquina repressiva a impor a lei do silêncio e que age, principalmente, nas comunidades periféricas. Torturas, desaparecimentos, ocultação de cadáveres… isto ainda acontece.

Lucas Menezes Fonseca / abril, 2020

Bibliografia

NAPOLITANO, Marcos. 1964: história do regime militar brasileiro. São Paulo: contexto, 2018.

SCHNEIDER, Henrique. Setenta. Porto Alegre: Não editora, 2019.

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