A metáfora da corrupção como câncer (comentário sobre a série “O Mecanismo”)

A METÁFORA DA CORRUPÇÃO COMO CÂNCER, OU: COMO TOMAR O FENÔMENO PELA CAUSA (comentário sobre a série “O Mecanismo”)

Este texto é sobre a série brasileira da Netflix, “O Mecanismo” (1ª temporada). Não é crítica de cinema. Também não será um pedido de “boicote” a produtora. Sim, as narrações do Selton Mello são horríveis de entender e a série é recheada de clichês e fanfarrices. Tem a Dilma falando de “estocar vento”, o Lula gravando discurso exagerado e reclamando do cenário “coxinha” do seu guia eleitoral, o Aécio sentido o “faro da vitória” (sim, há este trocadilho), uma inocente criança correndo atrás do carro que está levando o avô preso etc.. Não poderíamos deixar de citar a gravíssima distorção, nem um pouco inocentada por uma espécie de “liberdade de criação”, da famosa e tão significativa fala do Romero Jucá. Significativa, pois aquele áudio como tão bem pontuou a internet brasileira, foi spoiler da trama golpista (parlamentar-jurídica) no processo de impeachment da Dilma. A famosa colocação de Jucá de que era preciso “estancar a sangria” sai, na série O Mecanismo, da boca do personagem do Lula. Sem ilusões, sabemos que o Lula é o cara da “governabilidade” e do “governo de coalizão”, e o sinônimo disso é garantir acordos à torto e, literalmente, à direita. Porém, é bem questionável aplicar essa troca de autores de uma frase tão marcante dos acontecimentos políticos dos últimos anos.

Com essas considerações iniciais, vamos ao que nos motivou a escrever. Este é o maior dos clichês, mas por ser um senso comum compartilhado da direita à esquerda, é o menos criticado e inclusive passou incólume na crítica dos “boicotadores”: a corrupção como DNA do Brasil e causa de todos os nossos problemas. A série trabalha, a partir do personagem principal desta primeira temporada, usando o câncer como metáfora da corrupção. O Marco Rufo, delegado da polícia federal e personagem do Selton Mello, assim descreve o câncer: “o câncer é uma doença causada pela falha da regulação do crescimento de células no corpo, quase todos os casos são provocados por fatores ambientais. Ele pode se espalhar do local original e atingir todo o corpo, é o que a gente chama de metástase. Mesmo com todos os tratamentos que existem, o câncer luta para continuar existindo e na maior parte das vezes ele vence. Quando não existe o entendimento exato de como uma doença funciona e por onde ela pode se espalhar, não tem como chegar na cura. Essa é minha missão: decifrar o mecanismo”.

A corrupção estaria na raiz dos nossos problemas e se espalhou como um vírus em nossas instituições e práticas sociais. É o que se conta. O Marco Rufo, claro, uma autoridade policial e que por vezes extrapola os limites legais de sua atuação, seria aquele capaz de decifrar “o mecanismo” que faz a corrupção se alastrar. No correr da trama, em uma das delações premiadas, o presidente da “Petrobrasil”, ao ser questionado de como começou o esquema de corrupção, afirma: “Tudo começou com Dom João VI…”. Ufa! Pelo menos tiraram os povos originários desse esquema. Mas percebam a narrativa: a corrupção, marca do Brasil e do brasileiro, veio de Portugal e de sua família real. Ela se espalhou e hoje “não tem ideologia”.

Não poderia faltar também aquela explicação tão corrente entre nós sobre a corrupção e os problemas do Brasil: a comparação das “pequenas corrupções” com as grandes. Quantas vezes não ouvimos (talvez até reproduzimos) a sentença: “ahh, mas quem fura fila não pode reclamar do roubo da merenda!” (e não estou dizendo que furar fila é bacana, ok?). Ou a mais clássica: “esses políticos são tudo ladrão, mas e nós que os elegemos?”. Convenhamos que tem muita gente graúda nas ciências sociais brasileira que forneceu base conceitual para essas interpretações. Todo mundo é culpado (e talvez também inocente) ao mesmo tempo. Nessa perspectiva, o herói policial encontrará em uma situação corriqueira, no momento em que necessita do serviço da empresa estatal de saneamento e abastecimento de água, a “grande sacada” para descobrir “o” mecanismo. O “Seu Jorge”, que faz serviço de encanação com seu pequeno neto e luta diariamente pra sobreviver, será o modelo para entender o funcionamento de esquemas de corrupção envolvendo as elites políticas e econômicas através do Estado e de grandes empreiteiras. De refém de um sistema, Seu Jorge virou quase que o mentor.

Concordamos com o Rufo: “Quando não existe o entendimento exato de como uma doença funciona e por onde ela pode se espalhar, não tem como chegar na cura”. No entanto, a corrupção é fenômeno, não causa. Não é “o” mecanismo, é apenas parte dos mecanismos de um sistema que faz do Brasil, com a licença da palavra ao Selton “Rufo” Mello, uma “máquina de moer gente”. Sendo que esta máquina não é operada por todos e por ninguém ao mesmo tempo, tampouco ela sai moendo “qualquer gente” ou atua “sem ideologia”. Uma máquina que opera, pelas “leis de mercado”, no sangramento do fundo público para benefício das fraudes do sistema financeiro, que mercantiliza nossas relações sociais e cospe fora o sonho de milhões que são submetidos desde tenra infância a todos os tipos de violência.

Lucas Menezes Fonseca

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