JOSÉ SARAMAGO E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA
O debate que envolve a reforma da previdência me fez recordar José Saramago e seu ótimo “As intermitências da morte”. No livro, Saramago cria uma fantasiosa situação em que as pessoas param de morrer.
Para um mundo regulado pelo capital e as leis do mercado, a morte não funciona somente como parte de um ciclo natural da vida, mas também como uma indústria e que precisa de fluxos contínuos. Sua interrupção provoca abalos no sistema. É o caos. Líderes religiosos, governo e toda industria que lida e/ou se alimenta com a morte ficam desnorteados, desesperados, a procura de saídas e soluções ao impasse. Um verdadeiro salve-se quem puder. A história do Saramago segue e ganha novos elementos.
Se a ausência da morte é algo ficcional, a vida prolongada seria a promessa e a medida de uma civilização que fosse capaz de garantir o bem-estar e a qualidade de vida de seus membros. Porém, para um sistema que funciona moendo e descartando pessoas (umas mais que outras) para produzir mercadorias (muitas delas igualmente descartáveis para acelerar e impulsionar o ciclo produtivo-destrutivo), a longevidade pode também ser uma trava econômica. A condição dada de “improdutivos” e “inativos” e de representarem, na estreita visão de mercado, apenas “gasto”, faz do aposentado, ou mesmo da velhice, no mínimo, um incômodo. No entanto, como o processo de acumulação do capital necessita sempre se expandir, adaptando-se a novas formas e arrebentando barreiras e obstáculos para invadir todos os poros possíveis, a previdência passa também a ser mais explorada economicamente. Por um lado, o aumento da expectativa de vida surge como argumento para justificar um aumento no tempo de contribuição, por outro, estimula-se a adesão aos planos de previdência privados na expectativa de poder antecipar a aposentadoria.
Eis o horizonte que nos apresentam banqueiros e tecnocratas: jogar nosso futuro no cassino financeiro e/ou trabalhar até morrer. Os votos de “descanse em paz” aos nossos mortos nunca fez tanto sentido. Sob o horizonte do capital financeiro, não morrer seria o pior que nos pode acontecer.
Lucas Menezes Fonseca
escrito em março de 2017