“A CASA DAS DOIDAS” – uma resenha de Prisioneiras de Drauzio Varella
O livro Prisioneiras de Drauzio Varella foi lançado em 2017 fechando uma trilogia de sua experiência em penitenciárias de São Paulo como médico voluntário. Completa o itinerário literário os livros Estação Carandiru (1999) e Carcereiros (2012). Iniciando seu trabalho como médico nas penitenciárias em 1989, a trilogia atravessa, portanto, 28 anos de experiência e convívio com o ambiente carcerário. São quase três décadas que possibilitou ao autor testemunhar as diferentes e complexas teia de relações que estão por trás das trajetórias de vida de gente que se viu associada ao crime, dos mais pueris e triviais aos mais bárbaros e esquematizados, gente protagonista e vítima do crime organizado e das tragédias sociais. Também é um testemunho das mudanças no operativo do crime organizado de São Paulo (com desdobramentos nacionais), com marco na criação do Primeiro Comando da Capital (PCC), da incapacidade do sistema carcerário em ofertar maiores possibilidades de ressocialização e do fracasso da política vigente de “combate ao tráfico” em atenuar o drama social de uma guerra que parece sem fim.
Prisioneiras está organizada em capítulos independentes entre si (ou quase todos), abordando temas e/ou relatando casos através da reconstrução da narrativa de suas testemunhas e protagonistas. Em certo sentido, a forma em que Varella (re)constrói as histórias dão, em alguns capítulos, um tom de crônicas. Em que pese a densidade das questões discorridas é uma leitura que nos prende e com finais, por vezes, desconcertantes. Drauzio Varella não se limita em apenas apresentar “fatos”, mas, eventualmente, faz seus breves comentários e análise. O livro conta com um “Epílogo”, sendo o principal espaço em que expõe suas críticas e ponderações sobre o sistema carcerário e a (suposta) “guerra contra as drogas” que de resultado só tem produzido vítimas e encarceramento em massa, em especial da juventude negra e periférica, sem sinais factíveis de diminuição da violência nas cidades. As hierarquias do crime e seus códigos de conduta, a rotina e o cotidiano do presídio, as diferenças entre as penitenciárias masculinas e femininas, a sexualidade das presas, o abandono das famílias etc. são temas presentes em Prisioneiras.
Na hierarquia do crime (a referência é o PCC), tal como estabelecido em sociedade, as mulheres ocupam lugar de menor poder e prestígio. As decisões de cúpula são tomadas basicamente por homens. Como sabemos, estar no presídio não significa estar fora de contato com as pessoas “da rua” ou de outras penitenciárias. O PCC possui diferentes instâncias organizativas e normativas (colegiado, “ideia”, “torre” e “supremo tribunal”) que orientam e regulam suas atividades, dentro e fora das penitenciárias. Há também disputas internas pela orientação da organização tendo hoje, segundo Drauzio Varella, o domínio de uma ala mais “moderada”. A ampliação de sua atuação para além do estado de São Paulo, inclusive com conexões na América do Sul, tem gerado disputas com outras facções, a exemplo dos sanguinários motins nos presídios do Amazonas, Roraima e Rio Grande do Norte na virada de 2016 para 2017. Em São Paulo, onde o PCC reina quase que absoluto, Varella testemunha que a organização impõe sua própria ordem e forma de gerir conflitos nos presídios, a exemplo de instâncias como a “torre” e o “supremo tribunal”, diminuindo a resolução dos conflitos via “a moda do caralho” como antes imperava.
No que se refere a sexualidade, chama atenção a repulsa a orientação sexual lésbica ou homossexual no PCC, sendo inadmissível tais pessoas assumirem posições de importância ou liderança. No caso do homem, no entendimento prisional o “ativo” não se enquadraria na definição de homossexual. No caso das mulheres, Varella dedica boas páginas para discorrer sobre a sexualidade manifesta na penitenciária e as identidades construídas. O relacionamento lésbico é muito forte na penitenciária, existindo também um conjunto de nomenclaturas identitárias. Assim, temos as “entendidas” (passivas, ativas e relativas), “sapatões originais”, “folós”, “sacolas”, “chinelinhos”, “pão com ovo”, “badaroscas” e “mulheríssimas”. Aqui está presente também pessoas que passam a se identificar com o gênero masculino (“sapatões originais”). Para o autor, tais relacionamentos, por mais contraditório que pareça, afinal elas estão encarceradas, seria fruto de um contexto que propicia uma manifestação de liberdade sexual que as mulheres não vivenciaram fora do presídio.
O peso da sociedade patriarcal está em cada página, em cada história contada. O título de nossa resenha remete a transcrição da fala de boas-vindas recebida por Drauzio Varella quando ingressa pela primeira vez na penitenciária feminina, descrita como “a casa das doidas”. A dualidade entre “razão x emoção”, que, por vezes, é posta como inerente as naturezas masculinas e femininas respectivamente, costuram também a dinâmica dos presídios e do crime organizado. Em certa medida, Drauzio Varella retrata a diferença entre as prisões masculinas e femininas, dentre outras características, à frequência de brigas motivadas por ciúmes ou banalidades do dia a dia (como o lugar da calcinha no varal). Uma das presas, com função de liderança na penitenciária, se queixa de estresse e esgotamento por ter que, constantemente, gerenciar conflitos, tendo, inclusive, de fazer vista grossa a atitudes de insubmissão motivadas por uma ação intempestiva (como um ciúme). Tal insubmissão, em penitenciária masculina, seria impensável sem que houvesse rígida punição. Constata o autor que a cadeia feminina tem outra dinâmica de relações e interações sociais em comparação as masculinas, tendo o peso da equação entre razão e emoção: “A imposição de normas e as relações de mando, tão lineares entre homens presos, adquirem complexidade incomparável no caso das mulheres, porque as emoções entram em jogo com o mesmo peso da racionalidade” (p. 20). Devemos reforçar que atributos de racional e emocional como classificadores de gênero possuem uma produção que tem por base amplos processos históricos e sociais, não sendo, portanto, atributos naturais e, por isso, não podendo, sem cair em um argumento biologizante, na justificativa de posições e papéis fixos e imutáveis para homens e mulheres na sociedade. No entanto, dada a formação histórica-social dos sujeitos devemos reconhecê-los em suas manifestações concretas para compreender seus efeitos práticos.
Destacam-se também as histórias de mulheres que viram seus (ex)companheiros e familiares as abandonarem. O contraste das penitenciárias masculinas e femininas nos dias de visita atesta o fato. O sistema patriarcal dá a regra, como relata o autor: “Vi casos de irmãos detidos por tráfico, em que a mãe viajava horas pra visitar o filho preso no interior do estado, mas não se dava ao trabalho de pegar metrô para ir ver a filha na Penitenciária da Capital.” (p. 41). O homem que comete um crime encontra mais compreensão e tolerância por parte da família do que uma mulher.
Não pouco aparecem histórias de mulheres que chegaram na prisão já esgarçadas pelo machismo que as fazem mães abandonadas ou vítimas do abuso sexual ainda quando crianças, em geral vindo do próprio seio familiar. Mulheres também que negaram suas próprias vidas pela de sua família (filhos/as e irmãos/ãs), envolvendo-se em crimes para proteger seus entes queridos. Ou tantas, algumas já idosas, que entraram no presídio por receber dinheiro do tráfico para guardar armas escondidas em suas residências. Também tem as que são implacavelmente trancafiadas por tentarem entrar com pequenas quantidades de drogas nas visitas íntimas, são as “pontes” (muitas são cadastradas para isso, mesmo sem possuir relação familiar ou íntima, sendo remuneradas). A legislação sobre o tráfico de 2005 teve também como efeito imediato o aumento exponencial do número de presos e presas. Nas penitenciárias paulistas, afirma Varella, o contingente de presos por tráfico atingiu 30% entre os homens e 60% entre as mulheres, muitas delas por serem “pontes”. Sobre estas, defende penas alternativas e questiona: “O que a sociedade ganha trancando essas mulheres por anos consecutivos? O que representa, no volume geral do tráfico, a quantidade de droga que cabe na vagina de uma mulher?” (p. 209).
O convívio com as biqueiras, o desemprego, a violência e os abusos policiais, as famílias esgarçadas pelo machismo e pela violência sexual, as moradias precárias e as escolas abandonadas, além da ausência de um ambiente culturalmente inclusivo estão por trás de (quase) toda história de presas (e presos) no Brasil. Se estas questões não são determinantes a ponto de marcarem de forma indelével os destinos dos indivíduos, não há como ignorar a relevância que elas têm ao criar os meios e as condições mais propicias para sua (re)produção. Ler Prisioneiras é uma oportunidade de refletir sobre nosso sistema prisional, sobre a violência e de exercitar também empatia, sentimento tão necessário em meio a reinante lógica do encarceramento em massa. A transformação do Brasil em uma das maiores populações carcerárias do mundo é um projeto político, um capítulo a mais de manifestação da estrutura social racista e misógina de nosso país.
Lucas Menezes Fonseca / fevereiro, 2018
Fonte: VARELLA, Drauzio. Prisioneiras. São Paulo: Companhia das Letras: 2017.